Ou isto, ou aquilo, eles passarão, eu passarinho
Como aprender com a leveza e a simplicidade de quem brinca com as palavras
“Eles passarão, eu passarinho”. A frase é uma das mais populares de do poeta gaúcho Mário Quintana, também conhecido como o poeta das coisas simples.
O Poeminha do Contra tem apenas poucos versos. Os iniciais falam daqueles que estão atravancando o caminho do eu lírico. Não sei bem se tem alguém ou alguma coisa atravancando meu caminho, não me acho tão importante assim para ser problema dos outros. Acho que mais ou menos a metade dos meus problemas só podem ser resolvidos por mim (ou por um bilhete de loteria premiado) e a outra metade talvez nem seja tão problema assim, só mesmo coisas da minha cabeça.
Ainda assim, “eles passarão, eu passarinho” virou uma frase companheira para lidar com o que não está ao meu alcance e que tende a passar, só basta ter um pouco de paciência.
“Eles passarão, eu passarinho”. É algo que tenho me dito sempre que o imediatismo toma conta de mim. Quando quero respostas para ontem de situações que tem um tempo para serem resolvidas, absorvidas, assimiladas. Para uma pessoa imediatista, ansiosa, que tem o hábito de resolver tudo, sem pedir ajuda e nem procrastinar, esperar que o tempo, tempo, tempo, mano velho, corra sozinho, pela madrugada, e só me interrompa no final não é exatamente fácil.
“Eles passarão, eu passarinho”. Parece com o que meu sogro me disse quando eu, depois daquelas eleições de 2018, estava pensando em como ia ser a vida nos próximos quatro anos com aquele que hoje está inelegível no poder. Tudo passa, ele também passará. E não é que passou? Quem não soltou a mão de ninguém sobreviveu ao desgoverno, à passagem da boiada, à pandemia e às mais de 700 mil mortes e viu realmente o dia nascer mais feliz depois daquele 31 de outubro. Embora Bolsonaro tenha de fato passado, o Bolsofacismo segue aí e continua precisando ser combatido. Esses também um dia passarão e nós, por aqui, seguiremos passarinho.
Ainda sobre Mário Quintana, uma das coisas mais lindas que descobri depois que fui mãe e que ainda me emociona toda vez que escuto é esse projeto Crianceiras. Os poemas de Mário Quintana musicados são um espetáculo à parte. As músicas são do cantor e instrumentista Mário de Camilo.
Além de Mário Quintana, outro poeta que passou pelo Crianceiras foi Manoel de Barros, poeta pantanense. Um “cara que ama brincar com as palavras”, se autonomeou o poeta nessa matéria do G1. Confesso que antes dos poemas musicados desse grande autor eu conhecia pouco da obra. E agora conheço um pouco menos por já ter decorado todo o repertório musicado. Fui atrás de conhecê-lo um pouco e descobri esse documentário.
Na minha lista de poemas musicados favoritos, acho lindo o Sabastião.
“A palavra falada não tem pudor, o silêncio é a flor do amor”
Manoel de Barros
E Bernardo, que já estava uma árvore quando eu o conheci, também ficou no meu coração. Principalmente depois que meu primeiro sobrinho, de mesmo nome, nasceu. E pronto, parei com a corujice de tia. Mas veja se não é uma lindeza de poema musicado? A criança também é maravilhosa, criança divertida, esperta e feliz, como toda criança deveria ter a oportunidade de ser.
Sai andando por vários poetas neste texto, mas não expliquei porque a estrada do meu caminho me colocou aqui desta vez.
Mês passado fiz uma matéria e queria usar uma frase que uma vez li e que achava que era da poeta goiana Cora Coralina. Como já contei por aqui, minha memória é bem boa, então achei rapidamente na net a tal frase que eu tinha visto. E aí, claro, vinha a parte mais difícil. Descobrir se a tal frase, que em milhares de sites era de Cora, era mesmo dela. O primeiro indicativo de que não era foi a falta de indicação de onde teria saído aquele conteúdo. Não tinha o livro, a página, nada. Mas eu ainda queria usar a frase, encaixava perfeitamente no meu texto. Fui ver se o chat gpt me ajudava. E até ajudou. Disse: a frase é “atribuída” (aspas minhas) a Cora Coralina. E aí perguntei de novo pra inteligência artificial: E está em qual obra? E aí a IA emperrou.
Para minha sorte, tenho uma amiga/professora, que mora na cidade de Goiás, que tem o museu da poeta. A Sílvia Amélia de Araújo, já falei da oficina Desenredo dela por aqui, que ajuda a tirar os nós profissionais da cabeça, e indico também seu podcast, Conversa Insólita
me passou o contato de uma pesquisadora e diretora do museu de Cora, a Marlene. Pronto, eu tinha a minha resposta. Não era a que eu queria, a frase não é dela, mas vida que segue. Importante é a informação certa. Sobre Cora, também achei esses fragmentos dela por ela mesma.
Engraçado que todos esses poetas que cito aqui tem uma grande semelhança. A simplicidade. De vida, de texto, de palavras. Até admiro quem sabe escrever rebuscado, mas gosto mesmo do que é para todos, da delicadeza na simplicidade. Carlos Drummond de Andrade também pensava isso. Depois de conhecer a obra de Cora começou a fazer uma “propaganda” da autora goiana. Sobre ela, ele disse:
“Minha querida amiga Cora Coralina: Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (…).”
Tirei essa frase daqui.
Depois que esse texto enveredou pela poesia, me lembrei de um livro que li ainda criança, na escola, e reli depois com meus filhos.
Isto ou aquilo
Ou se tem chuva, ou não tem sol,
ou se tem sol e não tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e não guardo o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Celicia Meireles.
Sobre ela, vejam essa matéria.
E sem razão melhor para ir, deixo de Cecília este Motivo aqui. E até a próxima.
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles - Antologia Poética